terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Rifa-se um coração (Clarice Linspector)




Rifa-se um coração quase novo.

Um coração idealista.

Um coração como poucos.

Um coração à moda antiga.

Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.

Rifa-se um coração que na realidade

está um pouco usado, meio calejado, muito machucado

e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões.

Um pouco inconseqüente

que nunca desiste de acreditar nas pessoas.

Um leviano e precipitado,

coração que acha que Tim Maia estava certo

quando escreveu... "não quero dinheiro,

eu quero amor sincero, é isso que eu espero...".

Um idealista...

Um verdadeiro sonhador...

Rifa-se um coração que nunca aprende.

Que não endurece,

e mantém sempre viva a esperança de ser feliz,

sendo simples e natural.

Um coração insensato que comanda o racional

sendo louco o suficiente para se apaixonar.

Um furioso suicida que vive procurando relações

e emoções verdadeiras.


Rifa-se um coração que insiste

em cometer sempre os mesmos erros.

Esse coração que erra, briga, se expõe.

Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.

Sai do sério e, às vezes revê suas posições

arrependido de palavras e gestos.

Este coração tantas vezes incompreendido.

Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo.


Rifa-se este desequilibrado emocional que,

abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,

mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.

Um coração para ser alugado,

ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.

Um órgão abestado

indicado apenas para quem quer viver intensamente e,

contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida

matando o tempo, defendendo-se das emoções.

Rifa-se um coração tão inocente

que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário.

Um coração que quando parar de bater

ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:

" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo,

só errei quando coloquei sentimento.

Só fiz bobagens e me dei mal

quando ouvi este louco coração de criança

que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer".

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro

que tenha um pouco mais de juízo.

Um órgão mais fiel ao seu usuário.

Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.

Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,

mas que incomoda um bocado.

Um verdadeiro caçador de aventuras que,

ainda não foi adotado, provavelmente,

por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais,

por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.

Um simples coração humano.

Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.

Um modelo cheio de defeitos que,

mesmo estando fora do mercado,

faz questão de não se modernizar, mas vez por outra,

constrange o corpo que o domina.

Um velho coração que convence seu usuário

a publicar seus segredos e, a ter a petulância

de se aventurar como poeta.

Clarice Lispector

3 comentários:

  1. Lindo texto... como sempre!

    Beijinhos

    P.S. Já respondi ao teu desafio.

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  2. Olá Sandra
    Clarice Lispector é o máximo, este texto é uma beleza.
    Bjos

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  3. Não há nada mais lindo que um coração aberto, mesmo machucado, inconsequente, abestado...Como precisamos dele pra não perdermos a nossa humanidade!Querida, respondi do meu jeito o desafio lançado. Não sou muito boa nisso, mas fiz de um jeito meu. vai lá ver. Bj

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